sexta-feira, 29 de agosto de 2003
Mil trezentos e dezasseis vírgula sete :-
Há números muito simples e o número um é, seguramente, o mais simples de todos.
Utilizamo-lo tão frequentemente que nos esquecemos que é um número. É nosso, por ser banal. É Intímo e cruel. 1 caniche; 1 presidente americano inenarrável; 1 presidente da câmara municipal de Lisboa La Féria; 1 ministro da defesa que acredita no milagre de Fátima. 1 labrador castanho; 1 livro do Nick Hornby; 1 disco do Caetano; 1 jantar em Ocracoke com a pessoa que se ama. O número um quantifica, igualmente, o que de mais único gostamos e o que de mais único detestamos.
Mas há números muito mais complicados do que o 1; muito mais difíceis de se percepcionar. Números tão grandes que são literalmente do «outro mundo». Como, por exemplo, 70 triliões - um sete seguido de 22 zeros -, que representa a quantidade estimada de estrelas no Universo; dez vezes mais do que o número de grãos de areia das praias do planeta Terra.
Do outro lado do espectro, os números muito pequenos, podem também ser inimagináveis. Qual é a concepção que se tem do diâmetro de um protão que, em metros, é um milésimo de bilionésimo - um zero, uma vírgula, mais 14 zeros e o algarismo um no fim?
Mas estas são grandezas de outros mundos. Mundos para o Hubble e o CERN nos ajudarem a perceber melhor. Aqui, na nossa escala, os números parecem mais simples. Ou talvez não.
Tudo isto vem a propósito de um número aparentemente simples. Tão simples como outro qualquer que consigam imaginar. Um número «deste mundo»; muito mais próximo de 1, do que de 70 triliões, ou de um milésimo de bilionésimo. Mas que, mesmo assim, está a causar uma enorme dor de cabeça ao ministro da saúde e aos gestores do sistema de saúde pública nacional.
1316 é um número provisório. Resulta de um estudo promovido pelo Observatório Nacional de Saúde (ONSa), e representa a estimativa do número de mortos causados pela onda de calor da primeira quinzena de Agosto.
Mas, mesmo não sendo um número grande ou pequeno, 1316 mais parece um número «do outro mundo».
Primeiro, o relatório (formato zip) publicado pelo ONSa está incrivelmente mal escrito e mal estruturado, para além das quantidades aí referidas parecerem não estar muito bem definidas. Mais, o resultado numérico da análise efectuada foi "acidentalmente" arredondado, pelos autores do estudo, de 1316,7 para 1316, violando regras básicas de tratamento de resultados. Mas, claro que isto é irrelevante, porque 1317 é a mesmíssima coisa que 1316, não fosse o erro associado a uma análise deste tipo necessariamente grande. Só que, pasme-se, o estudo em causa não refere uma única fonte de incerteza. 1316 certinhos é o resultado final; nem mais, nem menos; nem mais ou menos.
Segundo, o impacto político da divulgação do relatório, resulta claramente da janela de oportunidade que foi criada pelo que de parecido se passou em França. Ou seja, estamos na presença, uma vez mais, de um número político, tão igual a tantos outros números do passado.
O problema, claro está, é que 1316 é por enquanto - e talvez por muito mais tempo -, um número tão irrelevante para a discussão em torno do impacto do excesso de calor na saúde pública dos portugueses, como é o número 305 [hectares ardidos] irrelevante para a discussão em torno do impacto da má gestão florestal e agrícola nos incêndios florestais. É que, enquanto só soubermos fazer contabilidade, continuaremos a olhar para os números como meros aglomerados de algarismos árabes.
O passo importante, esse, só será dado quando os integrarmos na nossa experiência. Quando os entendermos tão bem, que anteciparemos a dimensão do seu impacto nas nossas vidas. Quando os dominarmos, ao ponto de os manipular em nosso benefício. Para que não se repitam. Nem estes, nem outros parecidos.
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