by Carlos José Teixeira on Tue 11 Jul 2006 00:57 WEST
Slavoj Zizek, London Review of Books [via COURRIER INTERNACIONAL]
Desde 2001, Davos e Porto Alegre são as cidades gémeas da globalização. Na elegante estância suíça de Davos, a elite mundial dos patrões, chefes de Estado e personalidades mediáticas reúne-se, sob forte vigilância policial, para o Fórum Económico Mundial, a fim de nos convencerem (e a eles mesmos) de que a globalização contém em si o seu próprio antídoto. Em Porto Alegre, um porto subtropical brasileiro, uma contra-elite defensora de uma globalização alternativa tenta persuadir-nos de que a globalização capitalista não é o nosso destino e que “outro mundo é possível”, para retomar o slogan inicial. Mas, desde há dois anos, as reuniões do Fórum Social fazem cada vez menos títulos de primeira página.
O que aconteceu Às grandes figuras de Porto Alegre? Uma coisa é certa: alguns passaram para Davos. Hoje, os que dão o tom ao Fórum Económico Mundial são o grupo de empresários que se definem ironicamente como “liberais-comunistas” e não aceitam oposição entre Davos e Porto Alegre. A acreditar neles, podemos ter o bolo capitalista mundial (prosperar nos negócios) e comê-lo (defender causas anticapitalistas, tais como a responsabilidade social, a ecologia, etc.). Não há necessidade de Porto Alegre: Davos pode passar a Porto Davos.
Quem são, então, esses liberais-comunistas? Os suspeitos do costume: Bill Gates e George Soros, os administradores do Google, da IBM, da Intel e do eBay, bom como os filósofos da corte, como Thomas Friedman (editorialista do “The New York Times”). Os verdadeiros conservadores de hoje, garantem eles, pertencem não apenas à velha direita, com o seu ridículo apego à autoridade, o seu gosto pela ordem e o seu patriotismo exacerbado, mas também à velha esquerda, perpetuamente em guerra contra o capitalismo. À esquerda e à direita, combate-se num teatro de sombras, a mil léguas das novas realidades. Na nova linguagem truncada dos liberais-comunistas, a palavra-chave desta realidade é “smart” (vivo, esperto). Ser “smart” é ser dinâmico e nómada, inimigo da burocracia centralizada, acreditar no diálogo e na cooperação contra a autoridade central, jogar na flexibilidade contra a rotina, pôr a cultura e o saber contra a produção industrial, privilegiar as trocas espontâneas e a autogestão dos sistemas contra as hierarquias imobilistas.
Bill Gates é o protótipo daquilo a que ele chama o “capitalismo sem fricções”, a sociedade pós-industrial e o “fim do trabalho”. Os programas informáticos estão a levar a melhor sobre o material e os jovens “nerds” (informáticos obcecados) sobre o velho director de fato preto. Nas sedes das novas empresas há pouca disciplina aparente: antigos “hackers” reinam como mestres, fazem jornadas de trabalho muito longas, bebem bebidas gratuitas num enquadramento esverdeado. Por trás de tudo isso está a ideia de que Gates é um marginal subversivo, um antigo “hacker” que tomou o poder e se disfarçou de administrador respeitável.
Os liberais-comunistas são quadros superiores que fazem renascer o espírito de contestação ou, para formular as coisas de outra maneira, uma espécie de tortuosos da contracultura que tomaram de assalto grandes empresas. A sua doutrina é uma versão modernizada da “mão invisível” de Adam Smith: o mercado e a responsabilidade social não são antagónicos, podem ser conciliados com vantagens mútuas. Como diz Friedman, já não é preciso ser-se um bandalho para fazer negócios: a colaboração com os assalariados, o diálogo com os consumidores e o respeito pelo ambiente são a chave do sucesso. Oliver Malnuit fez recentemente o levantamento dos dez mandamentos dos liberais-comunistas, na revista francesa “Tecnikart” (nº99, 25 de Janeiro de 2006), lista essa de que se segue um resumo:
Darás tudo (programas de livre acesso, fim dos direitos de autor); não facturarás senão os serviços adicionais, o que fará de ti rico.
Mudarás o mundo em vez de te contentares em vender coisas.
Terás sentido de partilha e responsabilidade social.
Serás criativo: privilegiarás o “design”, as novas tecnologias, as ciências.
Dirás tudo: não terás segredos, sacrificarás tudo ao culto da transparência e da livre circulação da informação; toda a Humanidade deve colaborar e dialogar.
Nunca trabalharás: os empregos fixos, das 9 às 17, não são para ti; para ti é a comunicação “smart”, dinâmica, flexível.
Voltarás para a escola: praticarás a formação permanente.
Serás uma enzima: não contente em trabalhar para o mercado, criarás novas formas de colaboração social
Acabarás pobre: redistribuirás as tuas riquezas por aqueles que delas necessitam pois possuis mais do que alguma vez poderás gastar.
Tu serás o estado: as empresas devem trabalhar em parceria com o estado.
Os liberais-comunistas são gente pragmática, recusam qualquer atitude doutrinária. Já não há classe operária explorada, apenas problemas concretos a resolver: fome em África, o destino das mulheres muçulmanas, violência fundamentalista. Não há nada de que os liberais-comunistas gostem tanto como de crises humanitárias: permitem-lhes dar o melhor deles mesmos. Assim que estala uma crise dessas em África, em vez de se porem com discursos anti-imperialistas, encontram em conjunto a melhor maneira de resolver o problema: pôr os indivíduos, os governos e as empresas ao serviço do interesse colectivo, agitar as coisas em vez de esperar toda a ajuda dos estados, abordar a crise de uma maneira criativa e original.
Os liberais-comunistas gostam de recordar que certas multinacionais não respeitaram as regras do “apartheid” no seio das suas próprias companhias. Abolir a segregação no seio da empresa, dar o mesmo salário a brancos e pretos pelo mesmo trabalho; eis um exemplo perfeito de imbricação entre o combate político e os interesses económicos, na medida em que as mesmas empresas prosperam agora na África do “pós-apartheid”.
Os liberais-comunistas adoram o Maio de 68. Que explosão de energia e criatividade juvenis! A ordem burocrática feita em estilhaços! A vida económica e social recebeu um tal impulso, depois de terminadas as ilusões políticas! Os que tinham idade para participar andavam na rua a contestar e a combater. Hoje, mudaram eles próprios, a fim de mudarem o mundo e revolucionam as nossas vidas à séria. Marx não tinha dito que todas as sublevações políticas não eram nada se comparadas com a invenção da máquina a vapor? Não teria ele dito hoje: o que são os combates anti-globalização comparados com a expansão da Internet?
Os liberais-comunistas são, sobretudo, verdadeiros cidadãos do mundo, gente boa que se preocupa com o resto do planeta. Inquietam-se com o fundamentalismo, o populismo e a irresponsabilidade de certos gigantes do capitalismo. Sabem bem que os problemas de hoje têm “causas profundas”: a pobreza e o desespero em grande escala geram o terrorismo fundamentalista. O objectivo dos liberais-comunistas não é ganhar dinheiro, mas mudar o mundo (e, de caminho, enriquecer ainda mais). Bill Gates é hoje o maior benfeitor individual da história da Humanidade. Estende o seu amor ao próximo dedicando milhões de dólares à educação, à luta contra a fome e o paludismo, etc. No entanto, as riquezas que se querem distribuir, têm que ser ganhas (ou, como diriam os liberais-comunistas, têm de ser criadas). E aí é que está o busílis. Para ajudar as pessoas, justificam-se, têm de obter os meios para o fazerem. E a experiência prova que a empresa privada é, de longe, a forma mais eficaz. Os métodos estatistas centralizados e colectivistas deram provas da sua ineficácia. Regulando a actividade das empresas, exigindo-lhes impostos desmedidos, o Estado mina a sua própria razão de ser: dar uma vida melhor ao maior número de pessoas, ajudar os que têm necessidade.
Dar sentido ao sucesso económico
Os liberais-comunistas não querem ser simples máquinas de lucros: querem dar um verdadeiro sentido às suas vidas. São contra as religiões de antigamente, apesar de serem adeptos da espiritualidade, da meditação não confessional (é sabido que o budismo prefigura as ciências cognitivas e o poder da meditação pode ser cientificamente medido). Fizeram da responsabilidade social e da gratidão o seu credo: são os primeiros a reconhecer que a sociedade os favoreceu incrivelmente, que lhes permitiu desenvolver os seus talentos e criar riqueza. Por isso, consideram ser seu dever dar contrapartidas à sociedade e ajudar as pessoas. O sucesso económico ganha assim todo o sentido.
Não se trata de um fenómeno inteiramente novo. Recordemos Andrew Carnegie que recrutou um exército privado para reprimir os movimentos sociais dentro das suas empresas metalúrgicas, o que não o impedia de redistribuir boa parte da sua fortuna para causas educativas, culturais e humanitárias, provando que, apesar de ser um homem de ferro, nem por isso deixava de ter um coração de oiro. Também os liberais-comunistas de hoje dão com uma mão o que tiram com outra.
Encontra-se hoje nas prateleiras americanas um laxante de gosto achocolatado cuja publicidade contém esta recomendação paradoxal: “Sofre de prisão de ventre? Coma muito deste chocolate!” Por outras palavras, coma uma coisa que, em si, é um factor de prisão de ventre. Reencontramos esta estrutura do laxante de chocolate na paisagem ideológica actual. E é isso que torna insuportável um personagem como George Soros. Ele encarna uma exploração financeira feroz aliada ao seu próprio antagonismo: uma preocupação humanitária pelas consequências sociais catastróficas de uma economia de mercado descontrolada. A rotina quotidiana de um Soros é aldrabice em dois actos: consagra metade do seu tempo de trabalho a especulações financeiras, a outra metade a actividades “humanitárias” (financiar actividades culturais e democráticas nos países pós-comunistas, escrever ensaios, etc.) que compensam os efeitos das suas próprias especulações. As duas faces de Bill Gates são exactamente como as duas caras de Soros: de um lado, um homem de negócios implacável, que esmaga ou compra os concorrentes para construir um quase-monopólio; do outro, o grande filantropo que faz questão de lembrar: “Para que serve terem computadores se as pessoas não têm o que comer?”.
Segundo a ética liberal comunista, a procura do lucro tem por contrapartida a caridade, que faz parte do jogo. A exploração económica dissimula-se por detrás dessa máscara humanitária. Os países desenvolvidos não cessam de “ajudar” os países não-desenvolvidos, inclusive através de créditos, recusando-se assim a reconhecer o verdadeiro problema: a sua cumplicidade e responsabilidade na miséria do terceiro Mundo. Para tudo o que se enquadra na oposição entre “smart” e “não-smart”, a ideia-chave é deslocalizar. Exporta-se a face escondida (e indispensável) da produção – o trabalho especializado e hierarquizado, a poluição – para países do Terceiro Mundo “não-smart” (países invisíveis do mundo capitalista). A prazo, o liberal-comunista sonhava exportar o conjunto da classe operária para as “sweat shops” (oficinas com efectivos mal pagos do terceiro Mundo).
Não tenhamos ilusões: hoje, os liberais-comunistas são o único e verdadeiro inimigo de todas as lutas progressistas. Todos os outros – fundamentalistas religiosos, terroristas, burocracias corruptas e ineficazes – são o produto de situações locais contingentes. Ora, é precisamente por quererem resolver todos estes desvios secundários do sistema global que os liberais-comunistas encarnam o que não funciona neste sistema. Pode revelar-se tacticamente necessária uma aliança com os liberais-comunistas para lutar contra o racismo, o sexismo e o obscurantismo religioso, mas não podemos esquecer do que são capazes.
Em “La crainte des masses” (O medo das massas, editora Galilée, 1997, inédito em português), Etienne Balibar distingue dois modos de violência excessiva, opostos mas complementares, no capitalismo de hoje: a violência objectiva (estrutural), inerente às condições sociais do capitalismo mundial (a criação automática de excluídos e indivíduos descartáveis, dos desempregados aos sem-abrigo) e a violência subjectiva dos novos fundamentalistas étnicos e/ou religiosos (racistas, em suma). Apesar se poderem combater a violência subjectiva, os liberais-comunistas são agentes dessa violência estrutural que exacerba a violência subjectiva. O mesmo Soros que dá milhões para financiar a educação destruiu a vida a milhares de pessoas com as suas especulações e assim as condições para uma escalada da intolerância que denuncia.
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Desde 2001, Davos e Porto Alegre são as cidades gémeas da globalização. Na elegante estância suíça de Davos, a elite mundial dos patrões, chefes de Estado e personalidades mediáticas reúne-se, sob forte vigilância policial, para o Fórum Económico Mundial, a fim de nos convencerem (e a eles mesmos) de que a globalização contém em si o seu próprio antídoto. Em Porto Alegre, um porto subtropical brasileiro, uma contra-elite defensora de uma globalização alternativa tenta persuadir-nos de que a globalização capitalista não é o nosso destino e que “outro mundo é possível”, para retomar o slogan inicial. Mas, desde há dois anos, as reuniões do Fórum Social fazem cada vez menos títulos de primeira página.
O que aconteceu Às grandes figuras de Porto Alegre? Uma coisa é certa: alguns passaram para Davos. Hoje, os que dão o tom ao Fórum Económico Mundial são o grupo de empresários que se definem ironicamente como “liberais-comunistas” e não aceitam oposição entre Davos e Porto Alegre. A acreditar neles, podemos ter o bolo capitalista mundial (prosperar nos negócios) e comê-lo (defender causas anticapitalistas, tais como a responsabilidade social, a ecologia, etc.). Não há necessidade de Porto Alegre: Davos pode passar a Porto Davos.
Quem são, então, esses liberais-comunistas? Os suspeitos do costume: Bill Gates e George Soros, os administradores do Google, da IBM, da Intel e do eBay, bom como os filósofos da corte, como Thomas Friedman (editorialista do “The New York Times”). Os verdadeiros conservadores de hoje, garantem eles, pertencem não apenas à velha direita, com o seu ridículo apego à autoridade, o seu gosto pela ordem e o seu patriotismo exacerbado, mas também à velha esquerda, perpetuamente em guerra contra o capitalismo. À esquerda e à direita, combate-se num teatro de sombras, a mil léguas das novas realidades. Na nova linguagem truncada dos liberais-comunistas, a palavra-chave desta realidade é “smart” (vivo, esperto). Ser “smart” é ser dinâmico e nómada, inimigo da burocracia centralizada, acreditar no diálogo e na cooperação contra a autoridade central, jogar na flexibilidade contra a rotina, pôr a cultura e o saber contra a produção industrial, privilegiar as trocas espontâneas e a autogestão dos sistemas contra as hierarquias imobilistas.
Bill Gates é o protótipo daquilo a que ele chama o “capitalismo sem fricções”, a sociedade pós-industrial e o “fim do trabalho”. Os programas informáticos estão a levar a melhor sobre o material e os jovens “nerds” (informáticos obcecados) sobre o velho director de fato preto. Nas sedes das novas empresas há pouca disciplina aparente: antigos “hackers” reinam como mestres, fazem jornadas de trabalho muito longas, bebem bebidas gratuitas num enquadramento esverdeado. Por trás de tudo isso está a ideia de que Gates é um marginal subversivo, um antigo “hacker” que tomou o poder e se disfarçou de administrador respeitável.
Os liberais-comunistas são quadros superiores que fazem renascer o espírito de contestação ou, para formular as coisas de outra maneira, uma espécie de tortuosos da contracultura que tomaram de assalto grandes empresas. A sua doutrina é uma versão modernizada da “mão invisível” de Adam Smith: o mercado e a responsabilidade social não são antagónicos, podem ser conciliados com vantagens mútuas. Como diz Friedman, já não é preciso ser-se um bandalho para fazer negócios: a colaboração com os assalariados, o diálogo com os consumidores e o respeito pelo ambiente são a chave do sucesso. Oliver Malnuit fez recentemente o levantamento dos dez mandamentos dos liberais-comunistas, na revista francesa “Tecnikart” (nº99, 25 de Janeiro de 2006), lista essa de que se segue um resumo:
Darás tudo (programas de livre acesso, fim dos direitos de autor); não facturarás senão os serviços adicionais, o que fará de ti rico.
Mudarás o mundo em vez de te contentares em vender coisas.
Terás sentido de partilha e responsabilidade social.
Serás criativo: privilegiarás o “design”, as novas tecnologias, as ciências.
Dirás tudo: não terás segredos, sacrificarás tudo ao culto da transparência e da livre circulação da informação; toda a Humanidade deve colaborar e dialogar.
Nunca trabalharás: os empregos fixos, das 9 às 17, não são para ti; para ti é a comunicação “smart”, dinâmica, flexível.
Voltarás para a escola: praticarás a formação permanente.
Serás uma enzima: não contente em trabalhar para o mercado, criarás novas formas de colaboração social
Acabarás pobre: redistribuirás as tuas riquezas por aqueles que delas necessitam pois possuis mais do que alguma vez poderás gastar.
Tu serás o estado: as empresas devem trabalhar em parceria com o estado.
Os liberais-comunistas são gente pragmática, recusam qualquer atitude doutrinária. Já não há classe operária explorada, apenas problemas concretos a resolver: fome em África, o destino das mulheres muçulmanas, violência fundamentalista. Não há nada de que os liberais-comunistas gostem tanto como de crises humanitárias: permitem-lhes dar o melhor deles mesmos. Assim que estala uma crise dessas em África, em vez de se porem com discursos anti-imperialistas, encontram em conjunto a melhor maneira de resolver o problema: pôr os indivíduos, os governos e as empresas ao serviço do interesse colectivo, agitar as coisas em vez de esperar toda a ajuda dos estados, abordar a crise de uma maneira criativa e original.
Os liberais-comunistas gostam de recordar que certas multinacionais não respeitaram as regras do “apartheid” no seio das suas próprias companhias. Abolir a segregação no seio da empresa, dar o mesmo salário a brancos e pretos pelo mesmo trabalho; eis um exemplo perfeito de imbricação entre o combate político e os interesses económicos, na medida em que as mesmas empresas prosperam agora na África do “pós-apartheid”.
Os liberais-comunistas adoram o Maio de 68. Que explosão de energia e criatividade juvenis! A ordem burocrática feita em estilhaços! A vida económica e social recebeu um tal impulso, depois de terminadas as ilusões políticas! Os que tinham idade para participar andavam na rua a contestar e a combater. Hoje, mudaram eles próprios, a fim de mudarem o mundo e revolucionam as nossas vidas à séria. Marx não tinha dito que todas as sublevações políticas não eram nada se comparadas com a invenção da máquina a vapor? Não teria ele dito hoje: o que são os combates anti-globalização comparados com a expansão da Internet?
Os liberais-comunistas são, sobretudo, verdadeiros cidadãos do mundo, gente boa que se preocupa com o resto do planeta. Inquietam-se com o fundamentalismo, o populismo e a irresponsabilidade de certos gigantes do capitalismo. Sabem bem que os problemas de hoje têm “causas profundas”: a pobreza e o desespero em grande escala geram o terrorismo fundamentalista. O objectivo dos liberais-comunistas não é ganhar dinheiro, mas mudar o mundo (e, de caminho, enriquecer ainda mais). Bill Gates é hoje o maior benfeitor individual da história da Humanidade. Estende o seu amor ao próximo dedicando milhões de dólares à educação, à luta contra a fome e o paludismo, etc. No entanto, as riquezas que se querem distribuir, têm que ser ganhas (ou, como diriam os liberais-comunistas, têm de ser criadas). E aí é que está o busílis. Para ajudar as pessoas, justificam-se, têm de obter os meios para o fazerem. E a experiência prova que a empresa privada é, de longe, a forma mais eficaz. Os métodos estatistas centralizados e colectivistas deram provas da sua ineficácia. Regulando a actividade das empresas, exigindo-lhes impostos desmedidos, o Estado mina a sua própria razão de ser: dar uma vida melhor ao maior número de pessoas, ajudar os que têm necessidade.
Dar sentido ao sucesso económico
Os liberais-comunistas não querem ser simples máquinas de lucros: querem dar um verdadeiro sentido às suas vidas. São contra as religiões de antigamente, apesar de serem adeptos da espiritualidade, da meditação não confessional (é sabido que o budismo prefigura as ciências cognitivas e o poder da meditação pode ser cientificamente medido). Fizeram da responsabilidade social e da gratidão o seu credo: são os primeiros a reconhecer que a sociedade os favoreceu incrivelmente, que lhes permitiu desenvolver os seus talentos e criar riqueza. Por isso, consideram ser seu dever dar contrapartidas à sociedade e ajudar as pessoas. O sucesso económico ganha assim todo o sentido.
Não se trata de um fenómeno inteiramente novo. Recordemos Andrew Carnegie que recrutou um exército privado para reprimir os movimentos sociais dentro das suas empresas metalúrgicas, o que não o impedia de redistribuir boa parte da sua fortuna para causas educativas, culturais e humanitárias, provando que, apesar de ser um homem de ferro, nem por isso deixava de ter um coração de oiro. Também os liberais-comunistas de hoje dão com uma mão o que tiram com outra.
Encontra-se hoje nas prateleiras americanas um laxante de gosto achocolatado cuja publicidade contém esta recomendação paradoxal: “Sofre de prisão de ventre? Coma muito deste chocolate!” Por outras palavras, coma uma coisa que, em si, é um factor de prisão de ventre. Reencontramos esta estrutura do laxante de chocolate na paisagem ideológica actual. E é isso que torna insuportável um personagem como George Soros. Ele encarna uma exploração financeira feroz aliada ao seu próprio antagonismo: uma preocupação humanitária pelas consequências sociais catastróficas de uma economia de mercado descontrolada. A rotina quotidiana de um Soros é aldrabice em dois actos: consagra metade do seu tempo de trabalho a especulações financeiras, a outra metade a actividades “humanitárias” (financiar actividades culturais e democráticas nos países pós-comunistas, escrever ensaios, etc.) que compensam os efeitos das suas próprias especulações. As duas faces de Bill Gates são exactamente como as duas caras de Soros: de um lado, um homem de negócios implacável, que esmaga ou compra os concorrentes para construir um quase-monopólio; do outro, o grande filantropo que faz questão de lembrar: “Para que serve terem computadores se as pessoas não têm o que comer?”.
Segundo a ética liberal comunista, a procura do lucro tem por contrapartida a caridade, que faz parte do jogo. A exploração económica dissimula-se por detrás dessa máscara humanitária. Os países desenvolvidos não cessam de “ajudar” os países não-desenvolvidos, inclusive através de créditos, recusando-se assim a reconhecer o verdadeiro problema: a sua cumplicidade e responsabilidade na miséria do terceiro Mundo. Para tudo o que se enquadra na oposição entre “smart” e “não-smart”, a ideia-chave é deslocalizar. Exporta-se a face escondida (e indispensável) da produção – o trabalho especializado e hierarquizado, a poluição – para países do Terceiro Mundo “não-smart” (países invisíveis do mundo capitalista). A prazo, o liberal-comunista sonhava exportar o conjunto da classe operária para as “sweat shops” (oficinas com efectivos mal pagos do terceiro Mundo).
Não tenhamos ilusões: hoje, os liberais-comunistas são o único e verdadeiro inimigo de todas as lutas progressistas. Todos os outros – fundamentalistas religiosos, terroristas, burocracias corruptas e ineficazes – são o produto de situações locais contingentes. Ora, é precisamente por quererem resolver todos estes desvios secundários do sistema global que os liberais-comunistas encarnam o que não funciona neste sistema. Pode revelar-se tacticamente necessária uma aliança com os liberais-comunistas para lutar contra o racismo, o sexismo e o obscurantismo religioso, mas não podemos esquecer do que são capazes.
Em “La crainte des masses” (O medo das massas, editora Galilée, 1997, inédito em português), Etienne Balibar distingue dois modos de violência excessiva, opostos mas complementares, no capitalismo de hoje: a violência objectiva (estrutural), inerente às condições sociais do capitalismo mundial (a criação automática de excluídos e indivíduos descartáveis, dos desempregados aos sem-abrigo) e a violência subjectiva dos novos fundamentalistas étnicos e/ou religiosos (racistas, em suma). Apesar se poderem combater a violência subjectiva, os liberais-comunistas são agentes dessa violência estrutural que exacerba a violência subjectiva. O mesmo Soros que dá milhões para financiar a educação destruiu a vida a milhares de pessoas com as suas especulações e assim as condições para uma escalada da intolerância que denuncia.
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1 comentário:
Acho que vou criar um blogue anti-estupidos e vais ter um destaque nele... tenho um caniche e está muito mal de saude, é um elemento fundamental na familia, nem consigo imaginar a casa sem ele... por isso só tenho a dizer... quando estava à procura na net sobre problemas de coração nos cacinhes, dou com esta estupidez!!! ÉS UM VERDADEIRO ANIMAL... TU SIM, ÉS UM ANIMAL!!!!
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