segunda-feira, 5 de abril de 2004

Saudosismos

Houve um filme aí dos anos 50 ou 60, de René Clair, que em português teve o título de "O Vagabundo dos Sonhos" mas creio que em francês se chamava "Les belles de nuit" que, não sendo nada de muito especial, abordava um tema interessante. Bastante optimista, como de uma forma geral os deste realizador, tipo Kapra à francesa, era protagonizado por um actor que morreu muito novo, Gérard Philipe. Este encarnava um jovem músico em males de amor e de dinheiro que durante a noite ia sonhando com o mundo, em épocas sucessivamente mais remotas. Esses sonhos iam-se justificavando porque no momento em que decorria a história existia um velhote, rabugento, que implicando com tudo o que se passava na actualidade, repetia como um refrão: "Ah, no meu tempo...No meu tempo é que era!" e concluía-se que "no tempo dele" a vida era bastante cor-de-rosa.
O dito músico-sonhador na noite seguinte, procurava esse el-dorado que era a tal época do velhote, e no seu sonho onde as personagens viviam com outras roupagens e outros hábitos mas mais ou menos os mesmos problemas, aparecia de novo o mesmo velhote integrado nessa outra era, com a lenga-lenda de que “no meu tempo é que era”. Já se está a ver que tudo ia regredindo de noite para noite, renascença, idade média, antiguidade, acabando ( ? ) na pré-história com o velho a fugir de um mamute e a gritar que “no meu tempo é que era”.
A moralidade da história era de que todas as épocas se equivalem e a nossa nem era assim tão má como isso. Lembro-me de vez em quando desse filme, perante certos “esquecimentos” das pessoas. É claro que, para quem tem hoje 30 anos ou menos, o 25 de Abril é História. E faz parte da natureza humana ser um pouco como o velhote e acreditar que hoje é mau portanto dantes deveria ser melhor. E, infelizmente, a mensagem que muitas vezes passa é que o que não havia antes do 25 era apenas liberdade de opinião, mas o resto nem era assim tão mau como isso...
Ora era muito bom, que enquanto ainda estão vivos e com memória, os que viveram nos anos 60, 50, 40, testemunhassem o que era o dia a dia desse tempo. Que dissessem que, embora a liberdade de opinião fosse a parte do iceberg que se via e portanto era óbvia e inegável, a falta de liberdade era um cancro que roía toda a sociedade com as consequências mais devastadoras. Era a cultura, a ciência, a economia, o dia a dia mais comezinho e aparentemente inocente que era afectado. Por favor expliquem aos jovens a quem já oiço dizer que também não era tão mau como isso...
Pois era sim. Era pior do que isso.
M.L.


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